quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O crack no Brasil - uma epidemia planejada!

Ontem eu vi por acaso, ao zapear os canais da TV, que em um desses programas evangélicos estavam mostrando a mãe que acabou tirando a vida do filho dependente do crack aqui em Porto Alegre. Não me interessa comentar o sensacionalismo deste tipo de programa, mas eu acabei lembrando do caso que foi, de fato, bem comentado pela imprensa gaúcha. Não foi preciso assistir à matéria para reconhecer que a estória do crack é um assunto muito sério. Mudei de canal mas permaneci com o tema a me exigir considerações. Dormi pensando nas famílias que passam por este drama, nas vidas tão jovens que se desperdiçam em nome de zumbizar pelas ruas com aquele cachimbo sinistro nas mãos em busca de mais uma pedra.
O que temos hoje é uma legião de farrapos e maltrapilhos perambulando por aí, e não me refiro a mendigos ou moradores de rua. Qualquer um que se aventure a experimentar a primeira tragada logo em seguida vai se encontrar na mesma situação, independente da classe social, do bairro em que more, da marca da roupa que use. O desejo de consumir a substância supostamente prazerosa acomete gente de todas as idades, jovens, adultos, solteiros, casados, pais, filhos, pobres e ricos.
Desde a minha infância, lá pela década de 80 era a cola ou a loló que preocupavam a população. Eu mesma vi diversas vezes meninos com menos de 7 anos inalando aquelas porcarias assim, tranquilamente, enquanto caminhavam pela rua, em praças, em esquinas, pontos de ônibus, etc. Mas a impressão que eu tenho hoje é que eles não incomodavam tanto assim: eram todos pobres, quase todos negros, meninos de rua, engraxates, meninos vindos de famílias desestruturadas e sem estudo. Ou seja, nada de mais não é? Eles não interessavam. O que aconteceu então que fez com que de repente se falasse tanto no crack? O fato de que está sendo consumido por gente com poder aquisitivo, artistas, jovens de classe média/alta. Aí a questão muda de figura.
Não há muitos dados sobre o consumo e nem sobre o perfil dos usuários embora algumas universidades federais estejam com a pesquisa a caminho. Os últimos números são de 2005 e afirmam que 40% dos jovens internados em clínicas por conta do uso do crack são de classe média. Não estamos mais falando de gente sem importância não é?
Estamos falando de jovens que nunca haviam tido nenhuma passagem pela polícia, do aumento da criminalidade e de homicídios relacionados ao tráfico do crack, e aí os motivos são muitos e vão desde à falta de pagamento por parte dos usuários endividados com a droga que exige um consumo maior que outros entorpecentes e que, portanto acabam sendo vítimas dos traficantes, à morte prematura de jovens com ataques cardíacos aos 16 ou 18 anos, por exemplo, ou à morte de jovens que decidem roubar para sustentar o vício e se tornam alvo da polícia.
Isso para não falar no grande abalo econômico que esta epidemia está causando, quando tira de circulação jovens em idade produtiva, deixando muitas famílias ainda mais sem estrutura, ajudando a aumentar os índices de pobreza e miséria deste país. Quantas mães que são chefes de família e trabalham fora para conseguir manter os filhos acabam perdendo ou deixando seus empregos para se dedicar à reabilitação do filho dependente químico. E neste caso, quem sustenta aquela família? Para isso é preciso haver políticas públicas, ou as mães não têm como estar presentes em um momento delicado como este, apoiando os filhos e dando suporte emocional, que a meu ver é fundamental para quem já não se sente mais inserido em coisa alguma, devastado pelo efeito do crack.
Ano passado no Rio de Janeiro, um crime relacionado ao uso da droga ajudou a divulgar outro dado preocupante, o descaso do poder público com relação aos usuários e seus familiares. Um jovem que acabou cometendo um homicídio durante uma crise de abstinência fora internado 5 vezes, mas nunca por tempo suficiente porque seu plano de saúde só cobria a internação por 15 dias e a família não podia pagar o restante do tratamento. Além disso, em muitas clínicas ele não foi aceito por não consentir com a internação, o que é perfeitamente normal, qual é o dependente químico que adoraria parar de usar a droga e se internar bem feliz para reabilitação?? Para quem não pode pagar o jeito é levar o dependente à emergência de um hospital e pedir a internação compulsória através do Ministério Público, mas isso pode demorar muito, e tempo é o que um dependente definitivamente não tem. Isso já deveria ser providenciado automaticamente, uma vez que existe demanda, sem precisar que o MP entre com ação para que o Estado pague a dívida, afinal, isso é uma questão de saúde pública! É obrigação do Estado!
Ainda em 2009, casos violentos relacionados à dependência do crack levaram o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a prometer que seriam investidos R$110 milhões até o fim de 2010 para combater o problema e que seriam criados 2.500 novos leitos na rede pública de saúde aumentando a capacidade de internação para 12 mil dependentes químicos. Mas onde estão??? Alguém viu?? Já estamos em setembro e nada. Em ano de eleição as promessas ficam todas em suspenso, aguardando o resultado das urnas. E mais que isso, só a reforma do Palácio do Planalto custou aos cofres públicos a bagatela de R$111 milhões, um milhão a mais que o valor total para um programa nacional de tratamento aos dependentes químicos. Isso não é sério, não pode ser real, mas por incrível que pareça é.
Na ZH eu li que foram liberados R$215 milhões, vai saber! Eu nunca ouvi falar! O Temporão e o governo também não concordam com a internação compulsória, porque parece que se está tentando esconder o problema, trancando-o à força. Eu até posso entender esta posição, não acho que seja ideal para ninguém que uma outra pessoa decida algo de tanta importância e que os melhores resultados são sempre alcançados por pessoas que de verdade desejam se ajudar. Mas, e sempre tem o mas, neste caso, que está se tornando bem maior do que imaginamos e já fugiu do controle há muito tempo, talvez não haja outra saída, não sei, não sou especialista, mas se acontecesse o mesmo com meu filho, eu certamente o internaria querendo ele ou não. Muitas pessoas não têm ou não estão em condições de decidir por si mesmas.
Mas não é a opinião deles que me preocupa, e sim pensar na possibilidade de estar baseada na falta de vontade em investir no problema. Detesto acusar sem ter certeza, mas fica parecendo que o poder público não está a fim de trabalhar para recuperar um bando de “drogados”, que provavelmente vão voltar ao vício. E se todo mundo decidir internar os parentes na marra? Já pensou quanto isso iria custar ao governo? Então talvez seja melhor esperar até que o doente queira se ajudar por conta própria, porque quem sabe até lá ele já tenha morrido e seja um a menos na conta final!
Desculpem se estou sendo ofensiva mas infelizmente em matéria de política eu não confio em ninguém, tomara que eu esteja errada, sinceramente eu queria poder acreditar que as opiniões dos políticos são sempre fundamentadas na experiência, na tentativa de otimizar o trabalho, enfim, mas por hora só consigo duvidar.
Agora imaginemos o subproduto de uma droga, que é ainda mais viciante, podendo ser fumado ou injetado, cujos efeitos duram apenas 5 minutos e possível de ser comprado por R$5 e até R$1. Em seguida imaginemos uma grande população de rua, um grande número de usuários de drogas mais caras que precisavam de três vezes mais dinheiro para garantir seu consumo, e muita desinformação, falta de políticas sociais adequadas, falta de um sistema de saúde eficiente, etc. O que dá? Surto do uso de crack. Acho que o estrago já era esperado.
Por este motivo, quando eu digo que a epidemia do crack foi planejada me refiro ao fato de que não adianta o governo liberar grana para tapar furos. Crises se resolvem com a solução do problema que causou a crise. Ninguém se cura de uma doença sem conhecer e combater sua causa. É a causa que deve ser combatida e isso está bem longe de acontecer. Por quê? Por que o tráfico de drogas é apenas a ponta do iceberg. Por trás dele têm grandes empresários e políticos e, sendo assim, certamente não há interesse real em se acabar com um ramo de negócio tão lucrativo, que banca campanhas eleitorais, obras e ainda rende verdadeiras fortunas.
Eu não acredito que ainda exista o tráfico por que é difícil combatê-lo, acredito sim que não se quer combatê-lo por que esse dinheiro circula por todos os meios deste país e do mundo, onde menos se espera. Existe tele-entrega de cocaína em festas da high society, existe uso de drogas em festas da favela, não faz diferença. Enquanto se drogar for considerado cool isso não vai mudar. Os usuários de drogas precisam se conscientizar que são parte deste mercado cruel, onde muitos jovens e até mesmo crianças são vítimas. Quem usa paga o tráfico, as armas, as quadrilhas que compram as armas para fazer assaltos, a corrupção policial e todo tipo de violência relacionada. Existe droga porque existe quem usa, simples assim!
Tem quem pense que é só curtição, nada de mais. O problema é que com drogas como o crack o lance bacana acaba rapidamente e ficam as crises de abstinência, enlouquecedoras e graves.
Quando existe uma questão como esta, séria a ser discutida e analisada para que se possa resolver o mais rápido possível, mas não se faz isso por descaso, negligência ou por falta de recursos que não são liberados por falta de projetos bons e comprometimento, acho que dá para afirmar que era um problema anunciado. Apenas adiamos falar sobre ele. Estava debaixo de nossos olhos o tempo todo, planejado pelos traficantes para viciar em menor tempo, para aumentar a margem de lucro, ignorado pelas autoridades por ter atingido inicialmente uma parcela quase lumpem da população. E agora o jeito é tentar correr atrás do prejuízo.
O que eu acredito é que nada sozinho funciona. Honestamente, em se tratando de governo, como eu disse antes, qualquer coisa que façam já ajuda, ainda que não seja o suficiente, mas vindo deles é sempre bom a gente ficar feliz porque podia nem vir, então que bom que tenham projetos para amenizar a situação. Eu rezo para que ajude, de verdade, mas há controvérsias. O que eu humildemente sugiro são ações públicas e familiares que aliadas podem ser um grande recomeço para esta estória terrível:
- para começar é preciso que o governo invista em cuidados básicos como creches públicas, para que os pais possam trabalhar tranquilos, e que as crianças de lugares desprovidos possam aprender, se exercitar, receber orientação e cuidados que sozinhas em casa elas não vão ter;
- é preciso que se invista em educação, educação e educação, com turno integral nas escolas públicas, com diversas atividades esportivas e artísticas, para que as crianças não fiquem pelas ruas, podendo se tornar alvo dos traficantes inclusive como aviõezinhos – o que é bem comum, e que a escola em si seja forte, preparando para a vida, onde não se ensine o preconceito, nem o racismo, nem o embrutecimento, com professores super preparados para lidar com pessoas não com robôs como a maioria deles gostaria;
- é urgente que haja investimentos em trabalho e cultura, com cursos profissionalizantes, e mesmo cursos livres de arte, para quem já acabou a escola e não tem como pagar uma graduação ou ainda não passou em uma universidade pública, que aliás, deve ter muito mais vagas para se tornar democrática e poder abrigar os sonhos de quem não foi ensinado a sonhar;
- é igualmente urgente que tenham investimentos na área esportiva para que se criem times e equipes em diversas modalidades esportivas, para que ao sair da escola os jovens continuem se realizando no esporte, caso seja esta sua vontade – que é o que o pobre neste país não tem: vontade. Se vive como pode, sem recursos, sem perspectivas, e isso só gera mais desigualdade e mais violência, mais injustiças;
- e então seria ideal que o SUS oferecesse atendimento digno a todos, e claro, neste caso específico, aos usuários de drogas, o que serviria também aos jovens de classes mais altas, uma vez que as outras medidas seriam mais impactantes para as classes baixas do país, ao menos em curto prazo. Tratamento clínico e psicológico, porque a terapia é um grande passo rumo ao auto-conhecimento e o auto-conhecimento é a chave para que se entenda os motivos pessoais que levam cada um ao uso abusivo de drogas e álcool e consequentemente à evolução. Também faz-se necessário o uso da terapia e apoio às famílias dos dependentes, afinal tratar o doente e não tratar os cuidadores não tem o menor sentido.
Certamente entendo que nada disso se constrói do dia para a noite, mas uma hora a mudança tem que começar! Sem o primeiro passo nada se ajeita. É uma longa caminhada, porém necessária. Não tem jeito, para chegar à solução de um problema é importante que se haja de forma conjunta, combatendo outros problemas que são a causa.
Tudo isso vai extinguir o uso de drogas definitivamente? Não sei, não tenho bola de cristal! O ser humano por natureza sempre está buscando uma nova ilusão para entreter a mente agitada e ávida por aventuras infantis, no entanto muito se terá feito pela maioria das pessoas que necessitam.
Quanto às ações familiares a que me referi acima, por incrível que pareça, acho que é um pouco mais difícil, porém não impossível. Os pais precisam estar atentos ao comportamento dos filhos, e prontos a ajudar, não a julgar. Amor e respeito são fundamentais em qualquer circunstância. Buscar ajuda quando percebeu que não tem mais o chamado controle da situação também é uma medida importante. Infelizmente muitos pais deixam para tentar intervir quando já é tarde demais.
Têm familiares que preferem fingir que não há nada de errado até que o problema se torne grave, por vergonha, medo de sofrer preconceito, medo de ser julgados como culpados pelas atitudes dos filhos, principalmente quando se trata de gente de classes mais altas. Uma pena! A omissão impede que se fale sobre o assunto e os pais precisam conversar com os filhos desde sempre. Não é como se costuma fazer: deixam para falar de camisinha quando descobrem que os filhos estão tendo relações sexuais, deixam para falar sobre o uso de drogas quando acham que os filhos podem estar usando, mas aí é tarde.
Por que não ser amigo dos filhos, compartilhar as dificuldades, as dúvidas, a intimidade, desde que sem invasões, mas com amor, com tranqüilidade, sem pressão, sem cobrança? Pais mais próximos dos filhos têm mais chances de ensiná-los tudo que precisam saber, de estabelecer uma relação de confiança que é a base de qualquer relacionamento, é um erro pensar que isto só deve existir entre casais. Olhe para seu filho, mas olhe de verdade, descubra quem ele é, do que ele é capaz, seus defeitos, suas virtudes, seus medos...descubra seu filho!
Bem, como eu sou apenas uma blogueira, não seria de bom tom me estender mais do que já me estendi. Fica aqui mais uma vez minha palavra, que é com que posso contar na tentativa de ver o mundo transformado. E não tenham dúvidas, o mundo irá se transformar, a humanidade caminha para isso, lentamente, mas caminha, e enquanto há movimento há mudanças!


Imagem: Rostos Anônimos de Olga Gouveia

Informação nunca é demais:
1 http://www.senad.gov.br/

Um comentário:

  1. Oi, Rashmi!
    Aos poucos vou colocando em dia a leitura de tuas postagens anteriores... mas queria, em especial, registrar aqui: Esta tua vontade e crédito na mudança é - pra dizer o mínimo - contagiante! E tua preocupação no sentido de que informação nunca é demais é tudo que a blogsfera precisa neste momento. Eu agradeço.

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